Fermento Natural, o que é?

A fermentação natural está de volta às padarias e cozinhas dos homebakers do mundo inteiro, mas, afinal, o que é o fermento natural? Qual a diferença do fermento natural, fermento biológico e o fermento químico? Quais as diferenças que podemos observar nos pães feitos com levain? Fermento natural é a mesma coisa que fermento selvagem, sourdough, levain, massa madre, massa mãe?

O que é fermento natural ou fermentação natural?

Fermento natural é uma cultura de bactérias e leveduras em uma mistura de farinha e água.

É conhecido por diversos nomes: levain (fermento natural em francês,), sourdough (fermento natural em inglês), lievito madre (fermento natural em italiano), masa madre (fermento natural em espanhol), massa mãe (fermento natural em Portugal) e por assim vai.

Leveduras e bactérias na farinha e água

São todos basicamente a mesma coisa: uma mistura de farinha e água que foi “contaminada” por micro-organismos (fungos e bactérias) dispersos no ambiente que encontraram nessa mistura um ótimo meio de crescimento.  As principais bactérias presentes no fermento natural são os lactobacilos. As leveduras (fungos) variam de região para região e esse é um dos fatores pelos quais os pães feitos em San Francisco tem sutis diferenças dos pães feitos em São Paulo ou Londres, mesmo usando a mesma receita: mesma proporção de farinha, água e sal.

Pote com fermento natural
Fermento natural: o que é?

Quais os tipos de fermento existem?

  1. Fermento biológico seco: O fermento biológico seco é um tipo de fermento desidratado que contém cepas de levedura (geralmente Saccharomyces cerevisiae) em forma de grânulos. Essas cepas de levedura são cultivadas em condições controladas em laboratório e depois desidratadas. Durante o processo de fabricação, os grânulos são revestidos com uma fina camada de substâncias protetoras para aumentar sua estabilidade e prolongar sua vida útil. Para ativar o fermento biológico seco, é necessário reidratá-lo em água morna antes de ser adicionado à massa do pão. As leveduras no fermento biológico seco metabolizam os açúcares presentes na massa do pão, produzindo dióxido de carbono e álcool etílico como subprodutos, o que faz a massa crescer.
  2. Fermento biológico fresco: O fermento biológico fresco também é composto por cepas de levedura, normalmente Saccharomyces cerevisiae, mas é comercializado em uma forma não desidratada. Ele é vendido em blocos ou cubos e possui uma alta concentração de leveduras ativas. O fermento biológico fresco é obtido a partir da fermentação de uma mistura de água, farinha e açúcar, que fornece nutrientes para as leveduras se multiplicarem. Assim como o fermento biológico seco, o fermento fresco metaboliza os açúcares na massa do pão, liberando dióxido de carbono e álcool etílico para promover o crescimento da massa.
  3. Fermento químico: O fermento químico, também conhecido como fermento em pó, é uma mistura de bicarbonato de sódio (NaHCO3), um ácido fraco (como o cremor tártaro) e um agente estabilizador (geralmente amido de milho). Diferentemente dos fermentos biológicos, o fermento químico não contém leveduras vivas. Em vez disso, a reação química entre o bicarbonato de sódio e o ácido ocorre quando o fermento é adicionado à massa do pão e um líquido é introduzido. Essa reação libera dióxido de carbono, fazendo a massa expandir e criar uma textura leve e macia. É importante observar que o fermento químico tem um efeito único na massa e não há fermentação como nos outros tipos de fermento.
  4. Fermento natural: O fermento natural, também conhecido como massa madre, levain ou sourdough, é um tipo de fermento obtido por meio de uma mistura de farinha e água que é deixada para fermentar naturalmente. O processo de fermentação ocorre devido à ação de bactérias (Lactobacillus) e leveduras selvagens presentes no ambiente e também na própria farinha. Essas bactérias e leveduras são capturadas pela mistura de farinha e água e se desenvolvem ao longo do tempo. O fermento natural requer um processo de alimentação regular, onde parte da massa é removida e substituída por farinha fresca e água para manter a atividade microbiana. O fermento natural confere um sabor característico ao pão devido aos ácidos produzidos pelas bactérias durante a fermentação. Além disso, as bactérias no fermento natural ajudam a melhorar a digestibilidade do pão e a prolongar sua vida útil.

Esses são os quatro tipos principais de fermento usados na produção de pão, cada um com suas características específicas e efeitos na massa. A escolha do tipo de fermento depende do resultado desejado e das preferências pessoais do padeiro.

Qual a diferença do fermento natural e do fermento biológico?

Do ponto de vista biológico os dois são muito parecidos. A diferença é que o fermento natural surge das bactérias e leveduras contidas no ar e o fermento biológico industrializado foi feito em laboratório, domesticando apenas leveduras!

Sim! O fermento biológico tem apenas leveduras (Saccharomyces cerevisiae), não tem bactérias: esse é um grande fator de diferença no sabor dos pães com fermento natural e fermento biológico.

Pode ser encontrado em distintas formas: em grãos, em tablete ou em pó. É divido em 2 categorias definidas pelo teor de umidade: 

Fermento biológico fresco

Encontrado em tabletes, é o tradicional “fermento da padaria”. Possui aroma específico que é passado para o produto final. Sua umidade é alta (cerca de 70%) e por isso deve ser conservado coberto e refrigerado por no máximo 15 dias.

Ele é ativado entre 24°C e 36°C, mas é facilmente destruído se chegar aos 55°C.

Fermento biológico seco instantâneo

Geralmente encontrado em saquinhos de 10, 25, 50 ou 100 gramas, esse fermento possui uma forma de pó mais granulado e é criado por meio da secagem do biológico fresco. Ele possui um emulsificante em sua composição, o monoestearato de sorbitana, além das leveduras.

Sua umidade varia de 7% a 9% e, por isso,  sua durabilidade é maior, chegando até 6 meses se conservado fora da geladeira, em um ambiente arejado. Possui maior teor de agentes fermentadores, assim, sua utilização deve ser em uma proporção de ⅔ da quantidade do fresco.

Para utilizá-lo, basta misturar diretamente à farinha. Em outros casos, faz-se uma reidratação na água por aproximadamente 15 minutos. Também pode ser utilizado na fermentação indireta, como pré-fermento, misturado a farinha e água. Nesse caso, dependendo da hidratação, proporção de fermento/farinha ou tempo de preparo, recebe nomes diferentes, tais como esponja, poolish e biga.

Fermento biológico fresco (à esquerda) e fermento biológico seco (à direita)
Fermento biológico fresco (à esquerda) e fermento biológico seco (à direita)

Como criar um fermento natural?

Como você já sabe, se uma mistura de farinha e água ficar em repouso por algum tempo, cedo ou tarde, começará a fermentar, seja pela ação de leveduras e bactérias presentes no ar, seja pela ação das que já estavam presentes na farinha.

Quanto tempo leva para fazer um levain?

As leveduras selvagens estão presentes naturalmente em frutas e grãos integrais e esses são os “ingredientes” mais usados para se fazer seu fermento natural.

Uma das maneiras mais usadas para se iniciar um fermento natural é misturando farinha de centeio integral com água e deixar a mistura repousar em temperatura entre 24 e 32 graus até começar a fermentar (aparecer bolhas).

Essa fermentação inicial leva de 2 a 3 dias. O centeio é um ambiente muito propício para as leveduras selvagens e, por isso, o levain feito a partir do centeio tende a ser melhor do que o feito apenas com farinha de trigo. A partir da fermentação inicial, o processo por completo para fazer um fermento dura de 8 a 20 dias.

 

Temperatura ideal para o fermento natural - Levain
Temperatura ideal para o fermento natural – Levain

 

Agora que você já sabe o que é, veja:

Como fazer fermento natural

Como alimentar o fermento natural

Como usar um fermento natural para fazer pão?

O uso de fermento natural na fabricação de pão envolve um processo cuidadoso e artesanal. Antes de fazer pão, uma porção da cultura de fermento natural é misturada com farinha  água: processo que chamamos de construção do levain para fazer pão. Normalmente esse processo é feito no dia anterior ao dia de fazer o pão propriamente dito.

No dia seguinte, o fermento construído é adicionado a mais farinha, água e sal (massa do pão) e deixado em repouso para uma fermentação lenta e natural, que pode durar várias horas ou até mesmo dias, dependendo da receita e das condições de temperatura.

Como fazer pão de fermentação natural
Como fazer pão de fermentação natural

 

Durante esse período, as leveduras e bactérias presentes no fermento natural agem sobre os açúcares presentes na massa, liberando dióxido de carbono e álcool, o que resulta no crescimento da massa e no desenvolvimento do sabor característico do pão de fermentação natural.

Após a fermentação, a massa é moldada e assada, resultando em um pão com uma casca crocante, miolo alveolado e um sabor complexo e levemente ácido (azedo).

Quantidade de fermento natural para 1 kg de farinha?

Existem diversas receitas, mas em média usa-se 15% a 40% de fermento natural para cada quilo de farinha. Tal quantidade varia de acordo com o tempo de fermentação, tipo de produto e temperatura onde se está fazendo o pão.

Quais os benefícios e vantagens de se usar fermentação natural vs. fermentação biológica?

A primeira grande vantagem se relaciona à saúde. Normalmente, a fermentação natural é feita mais lentamente (entre 6 e 24h normalmente). Esse tempo longo de fermentação garante algumas vantagens.

Por que a fermentação natural é mais saudável de fato?

Quebra do Glúten

Glúten: Gliadina + Glutenina + ÁGUA
Glúten: Gliadina + Glutenina + ÁGUA

O gluten é uma proteína complexa, formada pela conexão de proteinas mais simples (glutenina e gliadina) após a mistura da farinha com água. Quando a fermentação é mais lenta, o glúten sofre deterioração natural e se “quebra” em proteínas mais simples. Portanto, parte do processo de quebra do glúten que iríamos realizar em nosso trato digestivo, já foi feito fora do corpo, durante a fermentação.

Índice glicêmico mais baixo

Os pães de fermentação natural possuem índice glicêmico mais baixo do que outros pães.

Tempo para consumo

Essa é uma pergunta clássica: Quanto tempo dura um pão de fermentação natural? Pães de fermentação natural podem ser consumidos e armazenados por mais tempo (3 a 15 dias), mesmo sem conservantes, uma vez que o ácido acético produzido durante a fermentação natural inibe o crescimento de bolor.

Sabor, aroma e textura

O pão feito com fermento biológico tem um sabor e aroma caraterístico, bem mais simples. Os pães de fermentação natural tem sabores muito mais complexos e aromas ácidos incríveis.

Além disso, a textura de um pão de fermentação natural é completamente diferente. Ele desenvolve uma casca mais grossa, muito crocante e miolo úmido. Veja também o post sobre autólise.

Casca crocante do pão feito com fermento natural
Casca crocante do pão feito com fermento natural

Como surgiu a fermentação natural

A fermentação sempre existiu no mundo. Trata-se de um processo da natureza e, sem ele, provavelmente não existiria a vida como conhecemos hoje.

De acordo com os estudos realizados, o registro mais antigo sobre o fermento na produção de pães é de 3.700 a.C., e sua origem está ligada ao início do cultivo de grãos pelo homem.

Origem do fermento industrial (biológico)

No final século XIX começou a ser desenvolvido o fermento industrializado, que ganhou bastante espaço no mercado pela praticidade e agilidade que oferece ao processo de panificação, uma inovação para a época na qual foi inventado.

Por aumentar a capacidade de produção em larga escala, o fermento biológico substituiu quase totalmente a fermentação natural em todo o mundo. Mesmo países tradicionalmente conhecidos pela qualidade de seus pães, passaram a utilizar o fermento biológico. Alguns estudos associam esse movimento à gradual intolerância ao consumo de pães e ao glúten.

Mas é importante destacar que o fermento biológico, utilizado de forma equilibrada, também pode produzir pães com qualidade e sabor. Ocorre que as formulas/receitas, em geral, contem uma quantidade de fermento desbalanceada, o que gera uma fermentação extremamente rápida e dificulta a digestão do pão.

O ressurgimento da fermentação natural em San Francisco

San Francisco na Califórnia tem uma longa história relacionada ao Sourdough (fermento natural).

Em 1854 havia 63 padarias em São Francisco. A Padaria Boudin foi fundada em 1849 por Isidore Boudin, filho de uma família de mestres padeiros da Borgonha, França. Boudin aplicou técnicas de panificação francesas em seu pão fermentado. A padaria continua a utilizar o fermento que teve origem no século XIX.

Em 1969, dois pesquisadores do Centro de Pesquisa Regional Ocidental do Departamento de Agricultura dos EUA em Albany, Califórnia, Dr. Leo Kline e Frank Sugihara, iniciaram um estudo das culturas do sourdough de cinco padarias na área de São Francisco: Parisian, Toscana, Colombo, Baroni and Larraburu. Depois de anos tentando identificar as bactérias responsáveis pelo sabor único do S.F. sourdough, eles se voltaram para o Departamento de Microbiologia da Universidade Estadual do Oregon, onde uma equipe liderada pelo Dr. William Sandine finalmente conseguiu isolar as bactérias da levedura selvagem (Candida humilis) e descobriu o lactobacilus desconhecido que produz o ácido láctico que dá ao pão seu sabor único. Chamaram-lhe (Lactobacillus sanfrancisco).

Pulando para os anos 1980, um homem teve singular importância na retomada da fermentação natural e em sua difusão: Michel Suas, o criador da San Francisco Baking Institute (SFBI): uma escola de panificação no sul de São Francisco, Califórnia. A escola oferece aulas de pão e pastelaria para padeiros profissionais e amadores, bem como instrutores de culinária.

Aos 21 anos, Suas se tornou chef patissier no Barrier, um restaurante três estrelas Michelin na França. Vários anos mais tarde, Suas e sua esposa imigraram para os Estados Unidos e viajaram pelo país em uma van Volkswagen, terminando em São Francisco em 1987, em meio a uma “revolução do pão“. Ele logo começou a dar consultorias às novas padarias artesanais da cidade. Acme Bread foi seu primeiro cliente, e La Brea Bakery foi seu segundo, seguido por muitos outros nos Estados Unidos, incluindo Metropolis, Grace Baking, Boudin Bakery, e os restaurantes de Thomas Keller. Em 1996, abriu a San Francisco Baking Institute (SFBI).

Para quem não teve a oportunidade de ir até lá, recomendo seus dois grandes livros:

Livro de panificação do Michel Suas
Panificação e Viennoiserie: abordagem profissional (Em português)

Panificação e Viennoiserie – Abordagem profissional: é um guia abrangente sobre pães e viennoiserie direcionado a estudantes, profissionais e entusiastas. Combinando fundamentos da tradição e abordagem moderna de métodos e técnicas, este livro une apresentação atraente e ensinamentos indispensáveis.

É destinado a ajudar professores, padeiros e chefs pâtissiers a acompanhar os recentes desenvolvimentos dos ingredientes, dos produtos e apresentações da indústria. As fórmulas/receitas são baseadas em uma variedade de métodos e processos clássicos.

Com esses conhecimentos, os profissionais estarão prontos para desenvolver habilidades mais avançadas, experimentar novas ideias e interpretar quaisquer fórmulas.

michel suas livro patisserie
Pâtisserie: Abordagem profissional (Em português)

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As fórmulas/receitas são baseadas em uma variedade de métodos e processos clássicos. Com esses conhecimentos, os profissionais estarão prontos para desenvolver habilidades mais avançadas, experimentar novas ideias e interpretar quaisquer fórmulas.

Outros alimentos fermentados

A fermentação de alimentos se confunde com a vida humana na Terra. Desde os primórdios a fermentação faz parte da alimentação do homem.

Os alimentos fermentados mais famosos são o vinho, o queijo, a cerveja, além do pão au levain.

Conheça esses livros incríveis sobre fermentação

A arte da fermentação


Livro: A arte da fermentação

Fermentação à brasileira


Fermentação à brasileira

Fermentação selvagem


Livro Fermentação Selvagem

Já que estou citando alguns livros sobre fermentação, não deixe de ver o post sobre livros de panificação que eu recomendo.

Este post tem 4 comentários

  1. Manuel C P Gama

    Bom dia, parabéns pelo material, esclarecedor e muito bem elaborado.
    Apenas para contribuir, veja neste parágrafo: “A diferença é que o fermento natural surge das bactérias e leveduras contidas no ar e o ferimento biológico industrializado foi feito em laboratório, domesticando apenas leveduras”. Está escrito FERIMENTO BIOLÓGICO… creio que seja FERMENTO BIOLÓGICO.
    Abraços.

    1. Madre Pães Artesanais

      Olá Manuel, muito grata pelo elogio e indicação do erro na digitação. Corrigido!

  2. Cynthia

    Realmente um ótimo texto! Bem completo.

  3. Denise

    Bom dia, excelente texto. Cheguei na página de vcs pesquisando sobre o glúten, pois ouvi de um médico que a fermentação natural transforma o glúten em fibra. Procede?

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